Laiane Guedes
3 min readFeb 5, 2022

Depenada

Essas coisas que vivia no interior já não me parecem comuns no meu mundo hoje, embora seja cedo para dizer o que vou dizer, acho que dentro de mim têm três moradoras, a primeira delas habita um lugar quase esquecido, porém carrega consigo lembranças bonitas e doentias, separo as bonitas para contar para vocês, as doentias deixo para a sessão de exorcismo às segundas feiras na rua 09.

A pele meio colorida, brilhosa, mas meio mal cuidada herdei do sol que pegava no caminho da escola, sozinha. Sempre sozinha.

Exceto pela parte que fui tomada por milhares de companhias indesejadas. Seguia no sol quente de meio dia, na tentativa de aprender, mas o caminho era longo, chegava sempre com fome e já havia esquecido tudo.

Ainda diante da quentura de meio dia batia um cansaço, uma gota de suor descendo molhando meu rosto, agonizando com os cadernos debaixo do braço lutando para o estojo cheio de canetas coloridas não pular fora da bolsa que apertava vários papéis rabiscados com livros que eu me esforçava para carregar…

O pai sentado em sua cadeira de madeira no alpendre da casa de besouro gostava de anunciar quando eu chegava, dizia ele: CHEGOU MINHA VEINHA.

Naquele dia não foi diferente, enquanto o galo imponente e vistoso pulava incomodado à sua frente por ter a perna amarrada, pronto para ser morto e servido no almoço meu pai não parava de falar.

A Água FERVENDO numa enorme panela sugeriu-me que mamãe foi ordenada a fazer um almoço dos grandes, 15 anos da filha mais velha.

O galo se debatendo e papai lutando, penas voando por toda parte, batatas sendo descascadas por MÃOS de mamãe. O galo reage, briga, até canta como se entendesse a situação: vai virar comida.

O galo reage, tenta libertar a perna amarrada no barbante, um parente distante chega pelos fundos tocando um pandeiro, anunciando a festa que eu havia esquecido, canso antes de tudo começar e pulo para o banheiro em melancolia.

Com a quentura amenizada em minha cabeça, viro para a cozinha e vejo um FACÃO sendo afiado por papai. A faca cada vez mais amolada, torna-se mais intimidadora.

O galo se desespera. Luta. E escapa.

Mamãe percebe a fuga do galo e dá o alarme.

O BENDITO ESCAPOU

Todos saem correndo atrás do galo, os barbantes reluzem no reflexo do sol assim como as penas, uma correria de doido, a panela de água solta fumaça esperando ansiosa para depenar o lindo galo, corri para perto, o fogão a carvão quebrou uma pedra e a panela virou

em cima

de

mim.

Abro os olhos e tudo está calmo, sem galo, almoço, aniversário ou qualquer indício de música, papai me olha e pede perdão, meu corpo está coberto por ataduras que vão de cima até embaixo cobrindo toda a extensão, queimaduras de segundo e terceiro grau, olho a janela me parece manhã, chamo a mãe e pergunto:

Conseguiram matar o galo?

Nada, quando Luís te viu embaixo da panela de água quente desmaiou, corri para te socorrer, pensamos no pior.

Mãe, vou ficar assim para sempre?

Não filha, vai passar.

E as cicatrizes?

Desaparecerão com o tempo, filha.

A porta se abre. Alguém entra. Pelo uniforme, percebemos que se trata da enfermeira, carregando uma bandeja repleta de remédio. Tira minhas ataduras e finalmente me vejo,

depenada.